Un Gatto nel Cervello aka A Cat in the Brain - 1990
No começo dos anos 90, já fazia algum tempo que os dias de glória do maestro Fulci, o "godfather of gore", tinham passado, e via sua carreira atolada em filmes menores, muito aquém da qualidade de suas mais significantes obras que urgiu nos anos setenta e primeira metade dos oitenta como Non si Sevizia un Paperino (1972), Zombi 2 (1979), Paura nella Città dei Morti Vivente (1980), ...E Tu Vivrai nel Terrore! L'Aldilà (1981), Lo Squartatore di New York (1982), entre outros. Pois foi em meio a esse cenário desolador que ele soltou este Un Gatto nel Cervello (também conhecido pelo acertado título alternativo de A Nightmare Concert), mais do que uma espécie de reflexão sobre seu cinema e suas obsessões particulares, um grito de inconformismo de um artista que se negava ao trivialismo, sem deixar de ser irônico também.
Por suas reflexões sobre o cinema de seu autor e uso ostensivo de metalinguagem, este filme é constantemente comparado até mesmo ao Fellini 8½ e A Noite Americana de François Truffaut. Mas, francamente assistir as reflexões cinematográficas e/ou as obsessões e angústias de intelectuais como Fellini, Truffaut, Godard, Woody Allen, Bergman, são fichinha em relação aos devaneios de Fulci, pois aqui é imprescindível ter estômago forte, e muito! Aqui Lucio Fulci aparece interpretando a si mesmo, o diretor que após anos dirigindo obras violentas e transgressoras se mostra afundado em uma crise, aonde cai em delírios, confundindo a realidade com sua imaginação deturpada. Entre uma filmagem e outra de assassinatos e perversões diversas, nosso protagonista vê sua vida se tornar um inferno, incapaz de comer um bife em um restaurante, ou tirar uma simples pestana no sofá sem ser assaltado por imagens de violência extrema, ele então busca a ajuda de um psiquiatra (David L. Thompson), sem saber que o mesmo é um serial killer que hipnotiza FULCI para este, em momentos de transe, sirva de testemunha e possível culpado pelos crimes que irão ser perpetrados pelo maníaco.
Depois de uma abertura genial, mostrando FULCI por cima, enquanto vai idealizando mais uma sequência sangrenta, a câmera vai se aproximando até mostrar a imagem alegórica de um gato revirando um suposto cérebro (o que dá o surreal título original). Aqui o diretor também se utilizou de colagens de outros filmes como Quando Alice Ruppe lo Specchio a.k.a. Touch of Death (1988), Il Fantasma di Sodoma (1988) e o slasher bagaceiro Massacre (1988) do picareta Andrea Bianchi (do irresistível Nights of Terror, 1981), entre outros, numa colagem alegórica e anárquica que chega a lembrar Delírios de um Anormal (1978) do José Mojica Marins (talvez a mais legal passada de perna que já deram na nossa estúpida censura), e reparem: aqui Lucio utiliza apenas cenas de filmes recentes a este, ou seja sua fase mais fraca. Além de velho recurso de metalinguagem do filme dentro do filme, que é utilizado constantemente ao longo da projeção, ainda temos a mistura do que está acontecendo de fato com os delírios do protagonista, rasgando a realidade em desdobramentos desconcertantes, deixando o espectador completamente a mercê do filme. Há ainda duas citações que achei curiosas: quando do ataque do psiquiatra, escuta um trecho da música "Peer gynt" de Edvar Grieg, uma versão do mesmo trecho que é assoviado por Peter Lorre em M (1931) de Fritz Lang, e outra é um assassinato no chuveiro, como se Fulci mostrasse como faria a sua versão de Psicose, só que aqui o sangue corre vermelho pela tela e a nudez da atriz é exposta em hiper closes.
O resultado final é de um caleidoscópio insano de loucuras e crueldades diversas, com o gore correndo desenfreadamente quase que ininterruptamente. Temos aqui um pouco de tudo: orgias nazistas (tiradas de Il Fantasma di Sodoma, com uma interessante cena de uma mulher nua em cima de uma mesa de sinuca), canibalismo e uma cabeça assando e derretendo dentro de um forno (tirados do Cause of Death), mais mutilações com motosserras, machados, facas, monstros toscos (também retirados de IL Fantasma...), tripas, sangue, dedos decepados, cabeças decapitadas, atropelamentos, olhos arrancados (a velha fixação do diretor por olhos...), etc, etc, etc. Enfim, pura doideira!
Embora tenha feito três filmes depois desse e falecido em 1996, A Cat in the Brain é praticamente o filme testamento de Fulci. Ele, que ao longo da carreira sempre teve problemas com a censura e moralistas (vale lembrar que apesar de declaradamente católico, ele tinha sido excomungado pela igreja desde os anos 70), nunca se afastou de seus pontos de vista, mesmo errando algumas vezes. Por isso, dá para se afirmar também que esse filme é uma forma de provar que o artista, mesmo aparentando não estar em seus melhores dias (já que na época Fulci já estava desacreditado por muitos), ainda tenta manter sua integridade. Torto e caótico, Un Gatto nel Cervello, surge não só como uma das obras mais instigantes de sua carreira, mas como uma experiência sensorial ímpar. Surpreendentemente uma das melhores obras do maestro.
Un gatto nel Cervello / A Cat in the Brain (1990) Direção: Luico Fulci Com: Lucio Fulci, David L. Thompson, Malisa Longo.