Suspiria - 1977
“Suzy Bannion decidiu aperfeiçoar os estudos de balé na mais famosa escola de dança da Europa. Ela escolheu a celebrada academia de Friburgo. Um dia, às 9h da manhã, deixou o aeroporto de Nova York e aterrissou na Alemanha, às 22h40m, horário local.”
Essa aparente narrativa em off realizada pelo próprio diretor na versão original em italiano, feita ainda durante os créditos, enquanto uma bela e estranha trilha sonora fica tocando ao fundo, é nada mais que o prenuncio de uma das mais delirantes viagens dentro do cinema de horror. Uma catarse de sons e imagens.
Numa noite de chuva torrencial, Suzy Bannion (Jessica Harper, convidada por causa de sua participação em “O Fantasma do Paraíso” de Brian de palma, uma das influências de “Suspiria”), ao chegar à escola de dança citada no prólogo, vê uma garota sair correndo chuva a fora. Esta última se chama Pat Hingle (a sueca Eva Axén) e acaba sendo assassinada junto com uma amiga. E isso cobre os alucinantes quinze minutos iniciais. Uma explosão de cores, imagens e sons.
A partir daí a nossa protagonista norte-americana desconfia que haja algo de muito errado naquela escola de balé. Com ajuda Sara (Stefania Casini) aos poucos se descobre que por trás da respeitável fachada da escola, administrada por Madame Blanc (Joan Bennet, escolhida pelo diretor por suas colaborações com Fritz Lang em obras como “Almas Perversas”, “O Homem que Queria Matar Hitler”, entre outros. Acabou sendo a despedida da atriz no cinema) e de sua auxiliar, Miss Tanner (a italiana Allida Valli de “O Terceiro Homem” e “Olhos Sem Face”), se esconde um grupo de bruxas, lideradas por uma lendária feiticeira de origem grega com mais de um século de idade chamada helena Markos (cuja atriz não é credita, segundo Jessica Harper, a intérprete seria uma ex-prostituta de Roma, com 90 anos!).
Depois de popularizar o giallo, com sua trilogia dos bichos, e uma comédia histórica, Dario Argento tinha soltado o estilizado “Prelúdio Para Matar” (Profondo Rosso), um dos grandes filmes do giallo. Com Suspiria Argento deixa os assassinos de luvas pretas e parte para o sobrenatural, porém dando continuidade as experimentações cromáticas e sonoras de seu filme anterior. Aqui ele extrapola as cores estouradas, com a antológica trilha do grupo Goblin (co-assinada com o próprio diretor) emoldurando a viagem.Com uma direção de arte barroca, em cenários elaborados e cores berrantes. Um grande delírio visual.
Com roteiro escrito a quatro mãos por Argento e a sua então companheira, a atriz Daria Nicolodi, que não interpreta aqui, se limitando apenas uma ponta na abertura e dublando Helena Markos na versão italiano. Embora a trama seja simples há algumas crateras, isso se deve por ser um filme sensitivo, onde, pelo bem e pelo mal, a forma se sobrepõe ao conteúdo.
Também seria o pontapé inicial da trilogia das Mães, que seriam: Mater Suspiriorum (a Mãe dos Suspiros), Mater Tenebrarum (a Mãe das Trevas) e Mater Lacrimarum (a Mãe das Lágrimas). Logo a segunda parte foi o filme seguinte de Argento: Inferno (1980), radicalizando ainda mais, tanto no experimentalismo estético, quanto no desapego ao roteiro, é um filme over que beira abstração, e assim como seu antecessor, esteticamente arrebatadora. A terceira parte só foi lançada trinta anos depois do primeiro, “O Retorno da Maldição - A Mãe das Lágrimas” (2007), um Argento já cansado e pouco inspirado, sem sombra de dúvida, inclusive se afastando das cores fortes do anterior, se tornou divertimento banal. Porém ainda longe da mediocridade de seu “Dracula 3D”.
Outra lenda que falam a respeito do roteiro, é de que teria sido inspirada nas histórias que contava a avó de Daria Nicolodi, de que, quando moça, teria fugido de uma academia de música alemã, pois lá se praticava bruxaria.
Argento instruiu seu cinegrafista Luciano Tovoli a assistir o clássico da Disney “Branca de Neve e os Sete Anões” e buscar inspiração visual na animação. Na verdade o diretor queria um filme protagonizado por crianças pré-adolescentes, mas foi barrado pelo produtor Salvatore Argento (nada mais que seu próprio pai), alegando que a obra seria banida. Argento só mataria sua vontade de usar pré-adolescente num colégio interno anos depois em outra obra-prima, Phenomena (1985), não à toa seu rebento predileto.
Curioso notar que o filme abre e fecha com temporais, embora isso se dê a ideia de um ciclo que se fecha, esse fenômeno meteorológico tem significado distintos em seus momentos. Na abertura a chuva torrencial surge opressora (ajuda no clima a junção perfeita de montagem e trilha sonora), no final ela tem função purificadora, para lavar a alma da protagonista, que caminha sorrindo em meio à tempestade. Outro tema curioso é o da memória, recorrente nos primeiros filmes de Argento, aqui a protagonista passa a obra toda tentando se lembrar de algo que viu no inicia, assim como os protagonistas de “Prelúdio Para Matar” e do filme de estreia do diretor, “O Pássaro das Plumas de Cristal”, que também é explicitamente citado aqui no final, ao mostrar um bibelô de vidro em formato de pavão, que terá importância na conclusão da trama.
Especula-se um remake para 2017, dirigido pelo italiano Luca Guadagnino e estrelado por Dakota Johnson e Tilda Swinton. É esperar para ver no que vai dar.Vale destacar que “Suspiria” foi lançado no formato digital no Brasil pela distribuidora Works, em DVD duplo com extras e numa resolução lindíssima, que valoriza todas as pirações cromáticas contidas nessa autêntica obra de arte.
Apesar de atores terem fama de canastrões nos filmes de Argento, segundo línguas venenosas o diretor se preocupa tanto com o impacto visual que deixa as interpretações em segundo plano, aqui em “Suspiria”, se não temos nenhuma intepretação shakespeariana, tem um elenco secundário curioso, além das supracitadas veteranas Joan Bennet e Allida Valli, ainda temos um ícone do cinema de baixo orçamento: Udo Kier, e o veterano ator alemão Rudolf Schündler (que além de ter participado de “O Exorcista”, também trabalhou com Fritz Lang em sua fase alemã, no clássico “O Testamento do Dr. Mabuse”).
Mais do que um conto de fadas (ou seria de bruxas?), “Suspiria” carrega um clima de puro pesadelo, onde até as falhas de roteiro colaboram para seu viés onírico. Uma obra-prima do horror, de encantar os olhos. Para ver e rever sempre.
Suspiria (Itália, 1977) Direção: Dario Argento Com: Jessica Harper, Stefania Casini, Flavio Bucci, Miguel Bosé, Barbara Magnolfi, Susanna Javicoli, Alida Valli, Joan Bennett, Udo Kier, Rudolf Schündler.